As mudanças de estação costumam mexer de tal modo comigo no corpo e nas emoções que me remetem a mergulhos profundos na minha alma. Entretanto, na transição desse inverno para a primavera, eu mergulhei ao meu inferno como jamais pude fazer.
Hoje particularmente, dei novo mergulho ao escuros do meu oceano mais profundo que vem de um processo de minha jornada rumo a mim mesma de alguns anos.
Desde minha aposentadoria como professora de infância e gestora pública, após 30 anos de dedicação, na procura e obstinação pela excelência de atendimento ao público que culminou com um processo de descoberta de uma deficiência física de nascença que me levou quase a ficar prostrada numa cadeira de rodas, eu resolvi me dedicar integralmente a minha saúde física, emocional e espiritual, bem como a assumir meu lado B profissional, a psicologia. Baita processo de mudança, porque consegui compreender quão amigo meus sintomas estavam sendo de mim, levando minhas pernas a caminharem por outros rumos e construir novos capítulos do livro da minha vida.
A vida é feita de decisões, nem sempre fáceis, pois requer de nós mobilizar e remexer em afetos muito bem guardados no porão da nossa alma.
Eu tive que mexer e ainda estou remexendo nesses afetos e sobre eles que venho hoje contar pra vocês, porque acredito que escrever tem sido pra mim, uma limpeza, uma depuração, uma decantação de alguns sentimentos tóxicos, que muitas vezes guardamos por sentimento de culpa, vergonha ou medo de nos expor. Mas quando a gente mexe neles e os decanta ou mesmo percebe que muitas situações tóxicas nem são nossas, a gente consegue expô-los e até quem sabe colaborar com um leitor ou uma leitora que passa por aqui no meu Jardim e dá uma paradinha para me “ouvir”.
Ainda mais nesse setembro amarelo, quando as pessoas se voltam para a temática do suicidio, falar do que se sente ou ler sentimentos de outras pessoas, acho bem propício, porque acredito que quando alguém busca saúde física ou mental, meio que se coloca como um bom modelo social.
Eu tenho vivido nessa transição do inverno para a primavera de 2019 e também da transição do outono para o inverno de período da vida, pois como uma mulher de 52 anos, que recentemente adentrou a menopausa, um encontro com a sombra de meu animus. Explico. Para Jung a anima é a alma feminina contraparte dos homens e animus é a contraparte masculina nas mulheres. Tema complicado e complexo em tempos de construção de novas identidades de gênero e que vai exigir ainda muitas pesquisas, revisões teóricas e novas análises para conectar-se a nova situação histórico humana. Mas na real, ao trabalhar meu animus, numa vivência de máscaras e teatro no IJEP/ Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, da qual faço Pós Graduação em Arteterapia , o que veio dessa sombra, foi um homem perverso, mal humorado, agressor. É o modelo de homem que ainda mora dentro de mim e que tenho exercitado transmutar e ressignificar. Abaixo a imagem da sombra do meu animus, ainda não integrada.
Não é pra menos, para além do destino que muitas vezes ocupamos num clã familiar, ainda temos enraizado em nossa cultura, o machismo e o sexismo, a qual todos e todas estamos mergulhadxs, e que diz respeito a construção desses modelos ou por vezes anti modelos.
No final da década de 90, eu trabalhei com grupos monitorados de mulheres no tocante a sexualidades, direito à saúde reprodutiva e prevenção e tratamento de dst aids/hepatites virais e redução de danos associados à saúde pelo uso de drogas em parceria da profa Dra Regina Facchini. Naquela época, já havíamos chegado à conclusão que trabalhar as questões femininas e feministas com as mulheres era tão importante como trabalhar a questão das masculinidades e do feminismo com os homens. E foi a partir do trabalho com o grupos de Mulheres do Centro de Convivência ‘É de Lei’ que se desdobrou o grupo de homens ‘É de Lei’. O número de participantes, as questões levantadas e a periodicidade do grupo era bem diferente um do outro, revelando o acúmulo de debate, de saberes, de experiências e possibilidades de expressão bem diferente entre um e outro.
O grupo de mulheres tinha uma circulação de 20 a 30 mulheres por semana. O grupo de homens quando tinha 5 participantes, por quinzena, era uma alegria. O grupo de mulheres tinha pautas desde o padrão de uso de drogas, passando pelos métodos contraceptivos até zonas erógenas de prazer do corpo e principalmente do tecido do clitóris. Chegamos mesmo a discutir e criar uma bula para o Reality, preservativo feminino em parceria com a DKT do Brasil.
Já o grupo de homens não conseguia muito sair da higiene do pênis e da tentativa de quebrar o paradigma do “macho garanhão” que quer pegar aquela “mina gostosa”.
Importante olhar para essa trajetória e verificar quantos grupos de masculinidades estão em diálogo hoje. Muitos! Dá uma alegria! Apesar do feminicídio e violência contra mulheres que cresce exponencialmente a antimodelos masculinos que são ainda aplaudidos e incentivados por homens públicos que intencionalmente tentam perpetuar um patriarcado que está prestes a ruir, temos na contracultura esses grupos de reflexões de homens que se multiplicam. A história vai dizer no futuro quem vai vencer essa jornada rumo a humanização de uma nova cultura da civilização humana.
Eu por aqui, fazendo meu papel de me modificar o que quero ver diferente no mundo e ressignificar em mim um animus cuidador, sensível, seguro e consciente.
Disse que hoje particularmente estou mais sensível porque assiti a um documentário incrível que recebi de presente de um homem sensível, meu amigo Pedro. A família do Pedro, assim como de tantos outros homens e mulheres, tem participado comigo de uma jornada na educação de nossos filhos e filhas de um modo muito especial e diferente que está mexendo num nível tão profundo, que nos traz por vezes desconfortos e em outras tantas, alegrias. Tantas vezes ouvimos que é necessário muitos mais que uma comunidade para se educar uma criança e é exatamente o que temos vivido. Infelizmente em tempos duros do fascismo, eu prefiro não dizer onde essa comunidade educa seus filhos e filhas, até pra que possamos preservar esse nível tão refinado educacional, mas posso dizer que essas crianças certamente serão pessoas mais humanizadas na construção de suas identidades. E deixo aqui bases de alguns dos princípios que temos educado nossos filhos e filhas, que retirei do texto de Silvia Amélia de Araújo, Pelos Direitos dos Meninos:
Esse filme que Pedro me presenteou essa manhã: “ O silêncio dos homens” traz muitas reflexões inclusive levantadas por minha amiga querida Anna Cecilia Simões – “o que é ser homem na nossa sociedade hoje?”, “ como se forja a identidade masculina?”, “ quais são os códigos para essa transformação ?”. O documentário traz temas como violência, falta de diálogo sobre sexualidade e amor com os pais, como revelar sentimentos que ficam a sombra dos homens por uma cultura machista e sexista e como muitas vezes esse silêncio pode levá-los a um consumo de álcool e outras drogas. O documentário tem depoimentos muito profundos, inclusive de uma amiga criancista a Raquel Franzim, do Instituto Alana, que foi coordenadora de CEI na prefeitura de São Paulo, e que faz uma análise incrível sobre o trato das educadoras dos bebês meninos e principalmente dos meninos negros.
O filme também levanta um tema que sempre trouxe para o debate para as supervisões de educadoras que pude mediar: porque ainda sustentamos o preconceito de educadores de creche homens? Essa pergunta nos remete a tantas reflexões e desconstruções do paradigma machista e sexista na educação das infâncias, que daria aqui um outro post só pra pautar esse tema.
Desses tantos grupos de trabalhos com homens e suas masculinidades gostaria de destacar um trabalho que também participou do documentário, meu querido amigo terapeuta holístico, Thiago Santoro, que vem discutindo e promovendo vivências com homens e também resssignificando sua própria masculinidade. Porque é assim mesmo, quando a gente se dispõe a fazer um trabalho com pessoas, a gente sempre está ressignificando o que é preciso dentro da nossa própria alma. E como diria Sócrates, filósofo grego: “ Você tem que ser o espelho da mudança que está propondo. Se eu quero mudar o mundo, tenho que começar por mim”, ou do próprio Gandhi, “ Seja a mudança que você quer no mundo”.
Deixo você então com o documentário “ o Silêncio dos Homens” e gostaria de propor um diálogo sobre essa forja das masculidades desde meninos que precisam acontecer no tempo histórico que vivemos, aqui no meu Jardim, entre minhas flores, mas sempre peço que não se assustem com o barulho forte e escuro das minhas asas de Mariposa. Boa reflexão!