Esse ensaio foi escrito na Pos Graduação Lato Sensu em Gestão Escolar para Educação Básica para a transformação do cargo de Diretora de Equipamento Social para Diretora de Escola, na UNIFMU, em 2007, nas aulas de Filosofia do Prof João Luiz Muzinatti. Magda Edgmar e eu gostávamos de refletir sobre os rumos que o mundo globalizado haveria de tomar, quais crises haveriam de lhe acometer e quais impactos tecnológicos permeavam esse mundo cheio de ambiguidades. Para essas reflexões, escrevemos esse artigo e ainda outro que denominamos “Em tempos de Matrix””, que você poderá ler, após essa publicação.
Magda Edgmar Rodrigues Rocha
Naíme Silva
Uma análise critica sobre a perda da identidade humana na Globalização
Resumo
Este ensaio traz uma proposta de analisar as relações humanas no contexto da Globalização. Apresentando as contradições quanto ao discurso do respeito à Diversidade, Direitos Humanos e integração das nações na dita Aldeia Global, em contraponto a realidade vivida de isolamento e impossibilidade de existência humana, exclusão das diferenças, fragmentação social, incentivo agressivo ao consumo, exploração da força de trabalho de trabalhadores e perda da identidade exposta neste como idéia denominada de “Não Lugar”. Este trabalho também traz questões para fomentar o debate sobre o futuro da Globalização no contexto do Capitalismo.
Palavras-chave: Não lugar; identidade; existência; aldeia global.
Introdução
Este artigo tem como objetivo analisar e discutir as estratégias de construção de padrões de comportamentos, que são detalhadamente examinados e impostos por um pensamento ideológico – cientifico/burguês-, numa chamada cultura de massa e de comunicação de massa, que imputam às classes populares em sociedades capitalistas e globalizadas a não expressão do “eu”, da não existência humana. Segundo George Simmel (…) dentro do contexto da luta de classes, o conceito de cultura de massa aniquila até mesmo a prática reformista como uma expressão da organização da classe operária e só permite a mudança por intermédio de elites e conhecimento especializado.(apud SWINGEWOOD, 1978, p. 99).
Discussão
O mundo contemporâneo, num processo das denominadas civilizações em progresso, dentro do contexto da aldeia global, traz-nos um discurso posto de uma rede de interações mundial. Neste, pessoas de qualquer parte, podem ter comunicação como se vivessem numa aldeia, com informações sobre os fatos ocorridos naquele momento e veiculados em tempo real para qualquer parte do Globo, bem como obter bens de consumo de qualquer parte do planeta, criando a ilusão de obtermos o Mundo as nossas mãos de forma imediata. Benko (2002) enfatiza nesta afirmação:
Os excessos de espaço, de tempo, de acontecimentos, de informações, tiveram conseqüências. Há 50 ou 100 anos, não se tinha todos os dias a sensação de estar na história. Hoje, o rádio e a televisão dão a impressão de que ocorrem acontecimentos de importância histórica todos os dias. Temos a história ao nosso alcance. Instala-se uma confusão entre a história e a atualidade. Esses três excessos de tempo, de espaço e de acontecimentos, infundem a sensação de uma perda do sentido. Ora, o que é novo não é que o mundo tenha pouco ou muito sentido, mas que sentíamos todos os dias a necessidade de lhe dar um. Outrora, em sua aldeia, o sentido se evidenciava por si mesmo. Hoje, somos chamados a dar um sentido a tudo, do terrorismo no Peru ao islamismo na Argélia. (apud SANTOS, p.248).
As “endeusadas” marcas de roupas e sapatos num mesmo modo de se vestir, o mito do superestar, o sentimento quase que obrigatório de se obter bens de consumo padronizados, o distanciamento da idéia dos alimentos como produto extraído da natureza pela força de trabalho de alguém, parece tecer uma rede não identitária na comunidade mundial. Marx (1867) afirma em sua teoria do materialismo dialético:
A recente descoberta científica, de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são [objectiva] pura e simplesmente a expressão do trabalho humano gasto na sua produção, marca uma época na história do desenvolvimento da humanidade, mas não dissipou de modo algum a fantasmagoria que faz aparecer o carácter social do trabalho como uma qualidade das coisas, dos próprios produtos. O que é verdadeiro apenas para esta forma particular de produção, a produção mercantil – a saber, que o carácter [especificamente] social dos mais diversos trabalhos [privados, independentes uns dos outros], consiste na sua igualdade como trabalho humano, e reveste uma forma objectiva, a forma-valor dos produtos do trabalho -, isso parece aos olhos dos homens imersos nas engrenagens das relações da produção de mercadorias, hoje como antes daquela descoberta, tão definitiva e tão natural como a forma gasosa do ar que permaneceu idêntica mesmo depois da descoberta dos seus elementos químicos. (vol. 1, seção 4).
Também nos parece que o padrão social mais aceitável de “ser e estar” estabelece a possibilidade de existência apenas para: homens, brancos, católicos, jovens e para uma elite burguesa com alto poder de compra e com repetitivos comportamentos bem adestrados, por um pensamento da aldeia global em foco. Analisamos que estes mesmos homens, brancos, católicos, jovens e porque não a própria elite burguesa dentro do Estado Democrático de Direito, defendem um discurso pelas minorias excluídas, em defesa das diversidades étnicas, de orientação sexual, pela igualdade de gêneros e pelos Direitos Humanos fundamentais. Esta contradição parece-nos não ser um ponto de reflexão para as minorias excluídas e dominadas pela lógica da aldeia Global. Mas também nos parece que ela é sentida subliminarmente e expressa pela violência urbana observadas por todo o Mundo nas grandes metrópoles. De acordo com Santayana (2002) em seu ensaio “O século XXI e o desafio das etnias”:
Teóricos da exclusão do outro, como os racistas modernos, pretendem, ao contrário, reduzir o mundo à tribo, mesmo que esta redução se manifeste na expansão territorial e na submissão dos outros povos, cuja identidade pretendem eliminar, ao impor aos dominados os seus próprios valores, e destruir os valores que tenham. […] quanto menos confiante é o homem em sua força essencial , mais nele se acentua o sentimento agressivo. (apud SANTOS, p. 321-323).
No documentário, Ônibus 174 (2002), Sandro, o ator da vida real, revela com seu grito social, num palco da representação da exclusão cotidiana carioca e brasileira, a situação dos adolescentes em drástica vulnerabilidade social. Vitima do terror da Chacina da Candelária, posteriormente transforma-se no seqüestrador do ônibus 174 de pessoas que como ele, também são vitimas da exclusão, exploração e decadência do capitalismo selvagem. O filme é provocador, no sentido de trazer a luz da reflexão, sobre uma sociedade que escolhe algozes e marginais na indústria da violência, mas que na verdade, não passam de vitimas desta mesma realidade perversa.
Os filhos das classes populares têm a violência como cultura no universo cotidiano, devolvendo a sociedade esta cultura como forma de expressar todo seu repúdio contra o “ Não Lugar”.
No Brasil, esta “ditadura” do consumo nos remete ao Dossiê Universo Jovem 3, pesquisa encomendada pela MTV que entrevistou 2.359 jovens das classes A, B e C das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Salvador e Porto Alegre, sob a coordenação de Ione Maria Menes:
O Dossiê utilizou os mesmos seis perfis comportamentais da primeira pesquisa, realizada em 1999, que variam entre “Antenas do Tempo” (19%), jovens de melhor nível social,ligados às novidades tecnológicas e mais liberais; “Novas Posturas” (11%), que refutam o consumismo, assistem menos TV e são politicamente corretos; “Sonhando com as alturas e lutando nas bases”(17%), que têm menos dinheiro, desdenha a importância do voto, sonha com a fama e se considera “mais ou menos feliz”; “Vivendo intensamente “(16%), dedicados à busca do prazer pessoal imediato e a adiar ao máximo as responsabilidades; “Arranhados pela vida” (21%), a parcela mais desiludida e sem perspectivas, que gostaria de ter mais dinheiro e liberdade e tem na TV sua principal fonte de informação e lazer; e finalmente os “Solidários” (15%), com perfil mais conservador, religioso e moralista, com maior atuação social e consciência política. Os entrevistados definiram sua geração usando palavras como “vaidosa” (37%), “consumista” (26%), “acomodada” (22%) e “individualista” (22%), e os dados da pesquisa confirmam essa visão um tanto pessimista sobre a juventude brasileira. No quesito Vaidade, o jovem brasileiro parece dar muito valor à aparência: 60% acreditam que pessoas mais bonitas têm mais oportunidades na vida, e cerca de 15% dos jovens entrevistados declararam que estariam dispostos a ser 25% menos inteligentes se pudessem ser 25% mais bonitos? (…) A evolução dos dados entre a pesquisa de 1999 e a atual revela o crescimento vertiginoso da tecnologia no cotidiano da parcela mais abastada da população jovem: celulares (de 19% para 71%), computadores (de 22% para 46%) e o acesso à Internet (15% para 66%). Cerca de 79% dos jovens usam o “torpedo” do celular para falar com os amigos, e a avalanche de blogs e fotoblogs não passa despercebida pela geração plugada na Web: 79% dos jovens sabem o que é Blog, 77% sabem o que é Fotoblog, 48% já passaram pelo o Orkut, a principal rede de relacionamentos da Internet, e 43% usam o Messenger, programa de mensagens instantâneas da Microsoft. (MIDIATIVA, 2005).
Esta não possibilidade de existência ocorre na intimidade das famílias, nas escolas regulares, nas universidades, nas empresas, nas igrejas, nos meios de transporte, e nos remete a idéia do “Não Lugar”. O “Não Lugar” é onde só se pode existir com uma máscara de gesso, provavelmente “comprada” por todos os membros da Aldeia Global como uma forma aceitável e desejável de existir.
Nas famílias de camadas economicamente desfavorecidas a dominação da TV, do homem sobre a mulher e crianças retrata a idéia do não lugar. As crianças não têm espaços para brincadeiras, a mulher tem dupla jornada de trabalho e o homem oprimido tem como único lazer o futebol. Ninguém escolhe. Tudo está mecanicamente orquestrado. E pela manhã bem cedo, o ritual e correria para iniciar a jornada de trabalho, muitas vezes informal, parecem levar todos a um cotidiano esvaziado de sentidos.
Nas Escolas e Universidades, públicas e/ou privadas, o Não lugar também tem seu espaço. Grades curriculares centradas em conteúdos transmitidos em curto espaço de tempo com prazos mínimos não apontam para o mesmo discurso de qualidade destas Instituições. A escola bancária de Paulo Freire não leva os educandos ao pensar. O Educando muitas vezes é preparado para um vir a ser. Ele ainda não é. E muitas Universidades com sua concepção tecnicista/funcionalista, apontam a necessidade de uma Educação para construir Empreendedores.
Nas Empresas de grande Porte, ainda ocorre com agressiva agilidade a troca da força de trabalho por alta tecnologia. E nas empresas de pequeno porte surge o impacto da terceirização do trabalho, destruindo assim direitos trabalhistas já conquistados.
As religiões, em especial as religiões cristãs, colaboram para produção da alienação humana, com o mesmo discurso em defesa dos humildes e excluídos, mas determinando regras de organização de suas vidas, de seu corpo e de sua alma em nome da fé de seus seguidores. Mas a relação mercadológica é fortemente presente nesta relação com a fé.
Noutra perspectiva, na cidade de São Paulo, o meio de transporte, direito constitucional de ir e vir, é um dos meios mais caros de conseguir chegar ao trabalho. Mesmo com altos preços não há quantidade de transportes suficiente para ofertar a população paulistana. Considerando assim os trabalhadores como “gado”, ônibus e metro estão sempre abarrotados de pessoas que mal levantam seus olhares aos outros passageiros, cansados das pesadas jornadas de trabalho e para muitos somados dupla jornada aos bancos escolares.
“Trabalho e linguagem são os dois modos que os humanos têm de continuar sendo humanos, ou seja, de gerar e gerir significados. Significar é humanecer”. (Codo, 2005). Nesta afirmação, Codo levanta uma reflexão, aqui contextualizada como “Não Lugar”, onde não há existência autêntica e cujas relações de trabalho perderam total significado. Trabalho, lazer e companhia de uns com os outros perdeu o significado de cultura, para que em seu lugar tenha espaço um bloco de fazeres sem a produção de sentidos. Um espaço onde o tempo e lugar não são para a produção de sentidos no encontro das pessoas, apesar de vivermos numa aldeia global, mas para que cada vez mais haja o isolamento, a exclusão e o anonimato de sua condição não aceitável. Ainda neste sentido, apontamos uma contradição no discurso daqueles que defendem a Globalização. Como os Vírus HIV e/ou HVC que para manter sua vida, acaba muitas vezes matando o hospedeiro que lhes preserva a vida, o Capitalismo com seu filhote globalizado parece seguir a mesmo lógica.
No documentário “Brasil, muito além do cidadão Kane”(1993), produzido pela BBC de Londres, podemos perceber claramente a produção ideológica historicamente construída em nosso país. A TV Globo, expressa como Mídia de forte poder no comando dos rumos da Política Brasileira se oferece como comunicação de massa criando o “Não Lugar” na intimidade das famílias brasileiras.
O “Não Lugar” ganha força sobre várias formas de exclusão e não existência. Neste ponto em particular, onde a comunicação de massa é agressiva e imperativa como no “plim-plim” que invade nossas casas, tem o objetivo de emudecer as bocas, criar o mundo mágico da ilusão, tecer o véu de um mundo inatingível e desejável das novelas e seus mitos. Uma afirmativa que conclui o documentário “Brasil, muito além do cidadão Kane”(1993) merece destaque: (…) A Globo começou a dominar o Brasil na ditadura militar. Manteve o silencio sobre as verdades do regime. (…) Será que a Globo poderá se libertar desta herança? Ou será que o Brasil poderá se libertar da Globo?
Ferrara nos aponta em seu ensaio: (…) o imaginário é uma característica da organização social: sua identidade ou sua mascara. Verdade ou mentira, real ou manipulado, o imaginário nos diz menos sobre si próprio do que sobre a sociedade que o constrói. (apud SANTOS, 2002, p. 46).
Conclusão
Nossa analise critica sobre o processo de Globalização formado pela concepção ideológica e política capitalista não é otimista.
A ilusão de que basta sermos fortes, determinados e empreendedores para obtermos sucesso é uma forma do Capitalismo “canibalizar e travestir” sua real intenção de massificar identidades, culturas, existências, de perpetuar o domínio de poucos sobre milhões, de destruir o planeta. Os humanos, quase sempre desumanizados perdem a sintonia com a natureza, com o outro, com sua unidade de existência.
O que a historia revela, é que no momento ou em períodos de catástrofe, o Não Lugar, em algumas pessoas ou lugares da Aldeia Global dá espaço ao lugar, a solidariedade, a existência, a coletividade real. Mas ao mesmo tempo, no contraponto, a catástrofe gera o espetáculo, o sensacionalismo, a produção dos Mitos, a ilusão.
A coisificação humana que gera a idéia do Não Lugar nos parece resultar um sentimento de que Deus é o MERCADO, Deus é o CAPITAL. Aqueles que não servirem a Deus não terão direito a um pedaço do Céu. Ficarão excluídos da paz e da felicidade eterna. Não será esta lógica também uma ilusão? O capitalismo por meio da Globalização, não está traçando seu próprio fim? Qual será o futuro de uma Aldeia Global desumanizada ou pouco humana, nos vários Não Lugares?
Estas questões têm a finalidade de colocar, fomentar e ampliar o debate para aqueles e aquelas que também sentem sua essência ameaçada em suas diferenças individuais e em suas interações humanas no Não lugar da Aldeia Global.
Referências Bibliográficas
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